Aquilo havia sido até fácil – eu achei que ela iria tentar argumentar contra e tal. Era melhor assim.
Nos abraçamos. Ela tem um cheiro bom... Deus, o que estou pensando? Ela é a viúva do meu amigo! Mas o pescoço... eu vejo! Pulsando! Aquela artéria! Carótida, não é? Eu quase consigo vê-la através da pele! Como pode isso? Nossa, estou com tanta fome! Acho que... só um pouquinho...
Mas, mas... não posso morder ela assim, sem mais nem menos. E depois? Então tenho uma ideia. Me afasto um pouco e olho bem em seus olhos. Eu sinto aquilo novamente. Como quando falei com minha irmã. A autoridade. O comando. Domínio.
Zé Acácio
| – Vai ficar tudo bem, Rita. Bom, não vou mais te incomodar, já vou indo. Vá pra cama, durma e só acorde pela manhã. |
Esta última sentença tem uma entonação diferente, impositiva, autoritária. Eu vejo os olhos de Rita ficarem vidrados. Ela se vira e caminha em direção ao quarto. Ao que parece as crianças já estão dormindo, mas eu espero alguns instantes de pé na sala. Após alguns minutos me sinto confortável para ir ao quarto dela e escuto-a dormir profundamente. Bom.
Penso um instante. Procuro um pouco e encontro uma sacola plástica – o que vou fazer é um teste e preciso tomar cuidado para não fazer uma lambança. Rita não é negra e não é homem, mas trabalha pra mim, um dos itens da minha lista. Começo a pensar que faria sentido...
Entro no quarto e acendo a luz. Nada. Fecho e tranco a porta – não quero que as crianças acordem com algum barulho estranho. Me aproximo cuidadosamente e me ajoelho ao lado dela. Não vou no pescoço, seria perigoso. Minha experiência com o pobre Ildalino me sugere que posso morder em qualquer lugar – de fato, nos filmes é mostrado várias vezes que vampiros podem morder em qualquer lugar que haja sangue.
Eu puxo suavemente o pulso dela pra fora da cama e abro o sacolinha, em prontidão. Então, com muito cuidado, mordo o pulso. E sinto.
Sim. SIM! O sabor! O calor! Tudo parece tão certo! É um gosto único, delicioso. O primeiro gole eu bebo meio ressabiado. O segundo já é mais confiante. Eu sorvo devagar, apreciando o momento. É como vinho... que bobagem! É melhor do que vinho! Melhor que qualquer coisa que já tenha provado em minha vida! Eu havia lamentado não poder mais beber café, comer as refeições saborosas de Isaura e o churrasco no domingo, mas que tolo eu estava sendo! E parece que... espera, tem até um gostinho de café nesse sangue! Por Deus...
Bebo um terceiro gole e noto uma leve redução na pulsação – caramba, agora consigo sentir até isso. É como se todo um universo de sentidos se abrisse para mim. Ok, hora de parar. Algo rosna dentro de mim. Que estranho, mas eu me imponho. Não sei o que é isso ainda, mas suspeito que é o que minha mãe falava, de que havia algo junto comigo. Bom, esse algo tem que aprender o seu lugar! Sou eu que mando aqui, miserável!
Tiro os lábios do pulso de Rita e lambo a ferida – que fecha-se diante de meus olhos maravilhados. É isso! Eu descobri! Eu preciso me alimentar de meus empregados! Faz sentido, eles trabalham pra mim, eu pago-lhes um salário, me oferecer comida faz parte do serviço.
Eu recolho o pulso de Rita e a cubro cuidadosamente – a noite está meio fria, é bom que não se resfrie. Parece bem, embora um pouco pálida, mas não sou especialista. Vou pedir para Marília vir vê-la depois, talvez levar a um médico.
Saio da casa, fecho a porta. As pessoas não trancam as casas por aqui. Enquanto paro na soleira da varanda olho para a imensidão lá fora – a casa não tem muros, como de hábito. A mansão mesmo só tem porque Marília insistiu nisso. Enquanto encaro a escuridão tremo um pouco. Talvez devêssemos ter muros.
Mas vampiros precisam de convite pra entrar, não é? Suponho que sim. Bom, acho que Rita não vai deixar nenhum estranho entrar na casa dela, então deve ficar bem. Enquanto caminho até o carro penso: vou aumentar a segurança da fazenda, contratar mais pessoal. Tem monstros aqui fora. Eu sei.
Sou um deles.
Como se o demônio realmente ouvisse meus pensamentos, eu encontro um bilhete dentro do carro.
Parabéns pela sua primeira alimentação bem sucedida, dominando essa parte do seu premio, você ganha acesso a outros benefícios inerentes que você logo perceberá e poderá exercer com maestria cada vez maior.
Nós estamos muito orgulhosos com o seu progresso.
Atenciosamente,
A Gerência.
Caixa Econômica FederalFilho da...
Não consigo me conter. Avanço rumo às trevas, me afastando da casa e mergulhando na escuridão. Paro no limiar da luz da casa, na completa penumbra, e grito.
Zé Acácio
| – SEU MISERÁVEL! COMO SE ATREVE A BRINCAR COM MINHA VIDA DESSA FORMA! VOCÊ ACHA QUE ISSO É UMA DIVERSÃO? FIQUE LONGE DE MIM E DE MINHA FAMÍLIA! VÁ EMBORA! |
Eu me afasto. Enquanto dirijo, me sinto furioso. Frustrado. Dou um soco no volante. Ainda sinto fome e a raiva parece aumenta-la ainda mais.
Preciso de mais, mas o povo por aqui dorme tão cedo... não posso simplesmente entrar na casa dos meus funcionários e roubar o sangue deles enquanto dormem. Acho que vou contratar gente especificamente pra me alimentar. Talvez em Juiz de Fora.
Sim, eu vou para lá. Agora que o problema da alimentação está resolvido, tenho que lidar com outras coisas. Meu maior inimigo é aquele que me transformou, um vampiro como eu. Eu já suspeitava, mas agora tenho certeza de que ele está me observando. Se vou enfrentá-lo preciso de amigos. Pessoas como eu.
Anarquistas. Preciso entender mais sobre essas divisões políticas vampíricas. São como partidos? Movimentos? Sindicatos? Eles são o que afirmam ser? Entre os partidos políticos, o que mais tem é partido com um nome que diz uma coisa, mas faz outra. Socialistas que defendem o capitalismo, liberais que apoiam proto-ditadores. Será a mesma coisa? Sombreiro é de BH e BH é do Sabá, logo ele deve ser do Sabá e a opinião dele sobre Camarilla e Anarquistas é enviesada por isso, então preciso conhecer a coisa em si antes de decidir a quem me aliar. Mas vou confiar nele quando diz que os Anarquistas são mais acessíveis. Pelo menos por enquanto.
Após alguns minutos dirigindo paro à porta da pequena capela que atende nossa família há gerações – é uma edificação antiga, tombada como Patrimônio Histórico do Município. O pessoal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional até já visitou aqui pra estudar o tombamento a nível nacional. Anexo à capela havia um cemitério onde todos os meus ancestrais havia sido enterrados desde o Capitão José Barras de Acácio, o bandeirante que fundou Barbados e estabeleceu a primeira fazenda da região, a Pó de Café, lá no século XVIII.
Tenho que me acalmar, se tentar o que desejo neste estado de espírito só vou conseguir problemas e agora preciso de soluções. Vou aproveitar pra checar o fórum e postar uma mensagem.
Gente, acho que descobri o tipo de sangue de que me alimento. Eu fiz uma lista das características da minha primeira fonte. Então hoje encontrei sua viúva, que também trabalha pra mim. Eu consegui pô-la pra dormir e me alimentei. Só um pouco, claro. Foi ótimo, a melhor coisa que já provei na vida.
Claro que eu ainda preciso confirmar, bem pode ser outra coisa como o tipo sanguíneo ou pessoas com relações próximas comigo, mas quanto mais penso mais faz sentido que o sangue seja dos que trabalham pra mim. Parece justo, eu pago um salário e eles me dão comida! Acho que vou contratar algumas pessoas para servir exclusivamente pra isso. Eu sei que pode não ser tããão empolgante quando sair correndo atrás de um alvo ou seduzir alguém em um beco escuro, mas o que importa é que o sangue é delicioso.
É isso, até.
P.S.: por que sempre que me alimento sinto uma vontade irresistível de beber tudo, mas que parece vir de outro lugar? Eu chego até a ouvir um rosnado que parece vir de dentro de mim. O que é isso? Um tipo de possessão? Sou médium, entendo um pouco de possessões.Clico em enviar. Então fico ali, no escuro, pensativo. O que fiz com a Rita não foi correto. Eu estava desesperado, com medo de perder o controle e atacar minha família, mas ainda sim... talvez devesse ter sido mais paciente. Até a forma como fiz foi tosca, usando meu poder daquela forma.
Saio do carro e o tranco desta vez, acionando o alarme. Boa sorte tentando entrar ali de novo, sanguessuga.
Conscientemente evito olhar para a cruz e desvio do prédio – eu tenho a chave, mas é melhor nem chegar perto dessas coisas. "O Deus deles é seu inimigo". Que diabos. Digo a mim mesmo que é um absurdo, Deus ama a todos. Mas é difícil evitar o sentimento. Em algum momento vou enfrentar isso, mas não hoje.
Salto pela grade com facilidade. Aliás, muita facilidade. Sempre fui ágil, mas uau, este corpo está top pra alguém tão morto como eu!
Caminho pelos túmulos que conheço tão bem. Dona Hélia, minha tia-avó. Severo, meu tio, que de severo só tinha o nome, era um bonachão.
Dou uma boa volta. Paro um pouco diante do túmulo do Capitão – na verdade um pequeno mausoléu com a imagem de São Acácio de Bizâncio. Um santo pouco conhecido no Brasil, mas padroeiro do velho Capitão Acácio e, por extensão, de Pó de Café. Um santo militar. Estar aqui me recorda sempre da minha herança e do meu dever. De certo modo não sou diferente dos nobres europeus cujos ancestrais romanos e germânicos dominaram aquele continente. Meus antepassados são guerreiros que conquistaram essa terra com sangue, suor e lágrimas. Esta é minha terra, meu domínio, meu feudo. Sou o protetor de todos em Pó de Café, em minhas mãos repousa o legado de séculos.
Não acho que o fantasma do Capitão esteja por aqui – faz tanto tempo, ele deve ter transcendido. Minha experiência e leituras me sugerem que raramente há fantasmas com mais de cem anos de pós-vida. Mas sei que há alguns por aqui ainda. Minha mãe não era uma Acácio pelo sangue, mas por afinidade. Mas meu pai era. E meus tios.
Curvo os cotovelos e abro a mão com a palma para cima, em oração. Concentro-me. Envio um pensamento ao Além, ao outro lado da Mortalha, da barreira que separa os mundos dos vivos e dos mortos.
Zé Acácio
| "Peço às almas amigas que se aproximem, pois este seu parente precisa de vosso auxílio nesta hora de escuridão. Nossa família está sob ataque e precisa de proteção. Por favor, peço que me ajudem." |