Ragnar Bjornsson…– Somos peregrinos, que buscam libertar os de valor. Poderosa é a minha senhora. Poderosa demais… Eu sou apenas um servo. Procuro ser útil da maneira que a ocasião permite. Aqui somos todos devotos dela, sabe? A Santa Escarlate. A Filha Esquecida da Lua de Sangue.O cruzamento do portal é frio, até mesmo para a pele morta de um vampiro, mas tudo dura apenas um segundo. Ragnar e seu carniçal percebem que no instante seguinte estão em uma espécie de masmorra circular, porém muito iluminada, com muitas tochas. As chamas, por alguma razão, são azuis, mas o que mais chama a atenção é a quantidade de pessoas ali; gado humano altamente variado. Homens, mulheres, crianças, idosos… Pessoas gordas, magras, louras, morenas, ruivas e de etnias variadas; algumas até mesmo exóticas. Todas elas um pouco sujas, vestindo roupas esfarrapadas e todas amarradas e amordaçadas. Todas sem olhos…
Subitamente o acompanhante repulsivo e encapuzado toca a própria testa, como se sua cabeça começasse a doer.
– Parece que o general escolhido está de acordo. Agora está desejando submeter-se, de corpo e alma com nossa irmandade. Ah! Minha senhora ficará muito feliz com isso – ele diz, mais para si do que para Ragnar ou Hans, abrindo um sorriso podre.
– Fiquem à vontade para satisfazer seus desejos variados… Eu devo me ausentar por algum tempo, mas logo retornarei. Peço que aguardem aqui, sim? Aqui estarão protegidos da… influência. Sem chance para qualquer outra pergunta, ele abre outro portal e desaparece, deixando Ragnar e seu carniçal com o gado capturado.
Kraven…Assim que pronuncia essas palavras, Kraven escuta a risada rouca e insana do mago cortar os ventos, como um trovão se propagando em um céu sem tempestade. Seu pulso queima, queima demais, a ponto de fazê-lo cair de joelhos. Ele sente sua carne sendo rasgada por aço incandescente invisível, enquanto os céus ficam vermelhos e os ventos tornam-se violentos como um furacão. Ele escuta sua serva ferida gritando em pânico, com os lupinos próximos.
E de lugar nenhum ela surge, passando calmamente ao lado dele… Uma garotinha muito pálida, com longos cabelos negros e escorridos, usando um vestido vermelho, descalça, com os pezinhos sujos de sangue seco. O chão ao redor começa a abrir, rachando em diversas fissuras enormes. Quando ele volta a olhar para os lupinos, eles estão caídos, batendo a cabeça no chão em uma convulsão violenta. Suas bocas começaram a espumar – primeiro muita saliva, depois muito sangue, que também escorria por suas orelhas, olhos e nariz.
Seu pulso parou de doer. Havia um símbolo nele:
A garotinha passava calmamente por cima dos lupinos caídos. Era um ato de desprezo, repulsa, mas também um ato de soberania, de demonstração de poder. Eles nada podiam fazer contra ela, porque no fundo eles eram exatamente o que eram: animais… primitivos… patéticos. Nada além de força bruta. Essa foi a última coisa que Kraven viu antes da sua vista escurecer e o torpor se apossar dele.
Jeremy…Ele calou-se assim que o semblante de Laila mudou. Era raiva. Raiva genuína.
− Esse maldito gado pagará pela morte final dele! A destruição de Eldred pareceu afetá-la mais do que Jeremy previa. Vacilante, o nosferatu não sabia o que dizer ou o que fazer – se é que deveria tentar dizer ou sugerir algo –, quando uma explosão grave, que lembrava um trovão distante, chamou a atenção dos dois.
– Pelos nove círculos do inferno! – Laila disse, em um rosnado.
– Que diabos é isso, agora?A expressão de ódio deu lugar ao medo. Ambos viram o céu tornar-se vermelho. Primeiro como uma mancha concentrada, que depois expandiu-se até tomar todo o horizonte. Com essa visão veio o vento; um vento forte como um furacão. O chão começou a abrir; fissuras enormes, o firmamento instável, erguendo-se como pequenas colinas de terra infértil.
Laila grita… Tudo treme, como se a terra estivesse sendo engolida.
Pânico, desespero e então… escuridão. Seu corpo perdeu toda a força e o sono dos não-vivos apoderou-se de sua carne.
Reverendo Della Lucci…Osiric e Della Lucci estavam incrédulos com a demonstração irresponsável de poder diante dos mortais. Della Lucci estava chocado, enquanto Osiric sentia um misto de indignação e fúria. Contudo, o salto da anciã não havia sido a última coisa sobrenatural que eles e a patrulha mortal da cidade presenciaram.
O céu tornou-se escarlate em sua totalidade, trazendo de lugar nenhum ventos violentos. Céu de sangue. Um furacão súbito. Um medo terrível, horripilante apossou-se do coração inerte do Lasombra, enquanto Osiric, em uma fúria absoluta e sem sentido, sacava sua grande espada e urrava para ninguém específico:
– Maldita seja minha alma se eu lhe conceder misericórdia, ou aceitar alguma de você!Ele investiu partindo em diagonal um dos guardas. Suas presas estavam expostas e em seus olhos o brilho de um animal. Gritos… gritos generalizados. Osiric avançava com sua espada em punho, abrindo caminho a golpes dilacerantes em uma massa mortal que se mutilava em uma furiosa histeria coletiva.
Ele se virou para correr, mas Mabel – a Mabel decomposta e repugnante – estava diante dele mais uma vez – agora mais próxima, quase tocando seu rosto com o dela.
– Deveria ter me ouvido, cordeiro de Deus – ela disse, em um misto de deboche e raiva, enquanto se transformava em uma espécie de gosma gordurosa cor de salmão, saltando do chão como se jorrasse de algum lugar, entrando na boca do Lasombra. Conforme ela invadia seu corpo, ele sentia uma dor terrível no peito. A paralisia se tornou completa em alguns segundos, e então veio a inconsciência. O desmaio. O nada. A incerteza.
FIM DO CAPÍTULO I.
PRÓXIMO CAPÍTULO: A CRIANÇA ESQUECIDA.