Desabo no banco do carro, e, segundos depois, cai minha máscara de frieza, de autocontrole e de indiferença ao assassinato que recém realizara. Sinto o sangue quente descer de meus olhos, e a angústia, o remorso, a culpa, toda aquela miríade de sentimentos confusos e emaranhados explode em meu peito, por meio de um pranto incontrolável. Que merda eu fiz? Por que fiz aquilo? Aquele homem teve tudo o que eu jamais tive. Foi uma pessoa boa, amada, tinha uma família, tinha amigos! Aquele homem fez alguma coisa de útil com a merda da vida dele! E o que eu fiz com a minha, além de gozar de prestígio e de riqueza que não construí e nunca mereci ter? De ouvir e de executar as obras mais magníficas da música, mas as quais não compus? Não são minhas! O que eu fiz? Usei, enganei, humilhei e afastei de mim todas as pessoas com quem cruzei nessa vida – ricas, pobres, belas, feias –, sem jamais ter construído uma bosta de relacionamento verdadeiro, profundo, real. Aquele homem merecia viver, e eu o matei. Ele merecia viver, e eu não. Ele não merecia morrer, mas eu sim. E, ainda assim, eu não morri. Nunca morri de verdade. E nunca morrerei. No máximo, serei destruído, desaparecerei, o que não é morrer, já que morrer implica o cessar da vida em um corpo que antes vivia e a libertação da alma em direção a um paraíso, ou o inferno, ou que for que seja. E meu corpo não está vivo, nem propriamente morto, e eu duvido que tenha uma alma, de verdade.
A voz de Howard, meu carniçal, então, interrompe aquele fluxo de ideias agressivas e cruéis que desfiro contra mim mesmo, como se fossem capazes de expurgar minha vergonha, meu remorso, minha culpa, por meio de um castigo ou de uma penitência autoaplicada. Ouço-o assustado, evidentemente impotente, questionando-me se há algo que ele possa fazer por mim. Me acalmo, então, e me vejo parcialmente banhado de sangue. Os olhos, o rosto, a camisa. Que desperdício. Suspiro, mesmo que por impulso. Eu sei bem por que fiz o que fiz; mas, naquele momento, a razão pela qual eu cometi aquele ato não me faz sentir melhor. Volto a tentar racionalizar tudo o que acontecera. Aquela condição oferecida a mim – a de um imortal, de um deus, de um vampiro –, e aceita por mim, de forma livre e consciente, exige de mim superar os entraves morais e éticos que talvez jamais se apresentem a um homem. Há um preço a ser pago por isso, e esse é o maior desafio de minha condição. Esconder-me do sol, alimentar-me de sangue, tudo isso é trivial face à necessidade me conservar são, e não uma besta assassina irracional, que não vê nada mais, no mundo, que suas necessidades mais primitivas. Talvez, aquele remorso, aquela dor e a vergonha que sinto, seja um bom sinal. Um sinal de que ainda não sucumbi. Que, ainda, tenho consciência das consequências de meus atos e me importo com isso. Talvez seja isso. Talvez.
- Está tudo bem, Howard. Está tudo bem. – Digo, assumindo, novamente, o semblante de autocontrole e de frieza, ao menos tanto quanto consigo, com os olhos perdidos em direção à rua, através da janela, apesar de não olharem, efetivamente, para nada. – Continue dirigindo. Está tudo bem. – Complemento, para, alguns instantes depois, mesmo dentro do carro em movimento, tirar o paletó, que, provavelmente, tinha sido poupado de meu pranto, tirar a camisa suja, limpar meu rosto e meu pescoço com ela e voltar a colocar o paletó.
Vestir um terno, sem camisa, poderia ser uma péssima escolha de visual para a maioria das pessoas normais. Para alguém como eu, com meu estilo e minha compreensão sobre o mundo da arte e sobre a superficialidade da maioria das convenções sociais, é apenas uma forma irreverente, sensual e ousada de abordar a moda clássica. Sei bem como me comportar para me assegurar de que os que me vejam assim vejam-me como um modelo avant-garde, um maldito filho da puta que consegue ser lindo e atraente mesmo se vestindo daquele jeito, como David Bowie ao posar e desfilar de vestido, na capa e à época do disco “The man who sold the world”. É uma questão de charme, de autoconfiança e de desdém pelo pensamento alheio que conseguem impactar, diretamente, a percepção que os outros têm daquele que os tem ou que os consegue trabalhar. E uma grande parte do que aprendi em minha vida na alta sociedade – uma espécie de conhecimento não escrito – era como fazer isso e incorporar essa dinâmica a minha personalidade. “Sou tão superior a tudo e a todos vocês, que posso usar um vestido e ser o homem mais atraente e poderoso do lugar”. Esse era o tipo de atitude e de pensamento que aprendi a adotar. E funciona. Sempre.
Não demoro para chegar ao lugar sugerido pelo Subtenente, e, alguns minutos depois, vejo um carro estacionar. Quando ouço meu telefone, atendo-o e ouço a voz do policial. Nesse momento, sinto raiva dele, pelo o que ele me fez fazer; mas não importa. É o preço que aceitei pagar e, apesar do remorso e da culpa que sinto por dentro, agora momentaneamente abafados, não trairei minha decisão. Já está feito. Preciso ver se a outra parte envolvida no contrato cumpriu com o que prometera fazer. Ouço-o chamar-me a seu carro e não respondo, apenas desligo. Volto meus olhos para Howard:
- Espere aqui, Howard. Fique atento e haja, caso sinta que deva.
Abro a porta do carro, desço, fecho o paletó como se estivesse usando o costume completo, fecho a porta do carro e caminho em direção ao outro automóvel. Abro a porta do passageiro e entro, frio, indiferente – bem diferente de quando eu e o policial fizemos o pacto e eu tentava seduzi-lo a fazer o que eu precisava que ele fizesse. Agora, era a hora de saber se ele cumprira sua parte no trato. Eu cumprira a minha.
- E então, Capitão? – Digo, reforçando a patente que ele logo assumiria, indicando que eu cumpri o que prometi. – O que você me diz? (Auspícios 4 - Telepatia) Ao dizer isso, olho o policial profundamente e ativo meu sangue, a fim de mergulhar em seus pensamentos e descobrir o que ele está pensando.